Remédios para emagrecer, dormir ou combater a impotência geram uma mania pelo consumo exagerado de medicamentos, cada vez mais freqüente nos países desenvolvidos
Um engraçadinho certa vez definiu a principal diferença entre os seres humanos e o resto dos animais: o homem é um animal viciado em pílulas. A mania é, de fato, tentadora. Você está doente, real ou imaginariamente, e, através do mágico ato de engolir um comprimido com ajuda de um gole d´água, vai se curar – ou se prevenir de uma doença. A tentação é impossível de resistir.
A cada dia, milhões de seres humanos não resistem. Alguns até exageram, se entupindo de vitaminas além das necessidades do corpo (boa parte das quais termina na urina, sem ser aproveitada pelo organismo). Com isso, ajudam a movimentar um mercado farmacêutico que chega aos US$ 400 bilhões ao ano.
O ato de tomar um medicamento é tão influente que mesmo um comprimido sem droga ativa alguma, uma mera pílula de açúcar, pode produzir efeitos benéficos – é o chamado “efeito placebo”, que ajuda a explicar a popularidade dos alternativos”.
Quase toda família tem seu armário de remédios em casa. São comprimidos, na maior parte; mas também vêm na forma de líquidos ou inalantes, supositórios e injeções.
São os países ricos que engolem a maior parte desse arsenal: 88% das vendas de remédios são feitas nos EUA, Canadá, Europa e Japão. Os americanos são os mais vorazes. Quase metade das vendas foram feitas nos EUA – somado ao Canadá, chega-se a 51% dos remédios vendidos em todo o mundo no ano de 2002, segundo a empresa de consultoria IMS, especializada no mercado farmacêutico. As populações desses dois países, juntas, ficam em torno de 5% da população global.
“A mania ocidental por pílulas é, em grande parte, resultado da lei do menor esforço. Nada é mais simples do que ingerir um medicamento sem gosto e obter a “cura” ou alívio para alguma doença ou alguma situação desagradável”, diz Rubens Baptista Júnior, médico do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. “Nada de dietas, exercícios, aquisição de hábitos de higiene ou prevenção”.
O alto consumo de pílulas nos EUA se explica em parte pela sua economia; o país também consome energia, automóveis ou alimentos acima da média mundial. Outro aspecto importante é o cultural. Em nenhum lugar do mundo a propaganda – do alívio rápido e simples para os problemas – está tão arraigada como na cultura de massa dos EUA. “Essa característica só encontra rival no comportamento das classes média e alta brasileiras”, diz o médico.
Solução mais fácil
Com isso, o paciente se habitua a receber pílulas para qualquer problema. A cultura já está entranhada no hábito dessas pessoas antes mesmo de elas abrirem a porta do consultório médico. Segundo Baptista Júnior, muitos pacientes costumam ir ao consultório esperando sair com uma receitinha na mão.
Em muitos casos da prática clínica – como o de certos casos de hipertensão arterial – é mais vantajoso para a saúde e para o bolso do paciente que ele não tome remédios, mas perca peso, adote caminhadas e diminua a quantidade de sal da dieta. Mas, como isso exige algum esforço (para o paciente e também para o médico, que deve acompanhar o caso), a solução do comprimido acaba sendo a adotada.
Muitos médicos acabam se rendendo ao desejo dos pacientes e receitam pílulas inócuas ou que não se aplicam ao caso examinado. “É muito comum que os pacientes reajam negativamente quando o caso não exige medicamentos: “Mas não vai receitar nem uma vitamina, doutor?”, lembra Baptista.
Mais do que procurar remédios para curar doenças, hoje a indústria farmacêutica se preocupa com as chamadas “drogas de estilo de vida” e com aquelas para tratar doenças crônicas, para as quais o paciente terá sempre de recorrer. E, de preferência, doenças cujas vítimas sejam medidas aos milhões – e os lucros, em bilhões de dólares.
São medicamentos para obesidade, artrite, hipertensão, diabetes, estresse, impotência, depressão, entre outros. Além de problemas menos graves como calvície, celulite ou pêlo facial nas mulheres.
O grande vilão é o estilo de vida urbano, sedentário e com acesso a uma alimentação rica em gorduras. Doenças cardiovasculares estão entre as principais assassinas da humanidade. O próprio coração mata mais que vírus e bactérias nos países desenvolvidos e mesmo naqueles em desenvolvimento com razoável grau de saúde pública, como o Brasil.
A “polipílula”
De acordo com a cardiologista Tânia Martinez, chefe do Departamento de Aterosclerose da Sociedade Brasileira de Cardiologia, em 2000 foram registradas 260.555 mortes no Brasil em decorrência de doenças cardiovasculares, o equivalente a uma morte a cada dois minutos. “Se somarmos o total de óbitos gerados por enfermidades como a Aids e o câncer naquele ano, não atingiríamos metade dos números de mortalidade em decorrência de problemas cardiovasculares”, afirma Tânia.
Isso ajuda a explicar o trabalho de dois pesquisadores britânicos, Nicholas Wald e Malcolm Law, do Instituto Wolfson de Medicina Preventiva. Eles bolaram uma “polipílula” que a respeitada rede britânica BBC não hesitou em chamar de “droga milagrosa”.
A idéia é juntar em apenas um comprimido seis remédios diferentes – drogas para diminuir o colesterol, reduzir a pressão do sangue e prevenir ataques cardíacos.
Segundo Wald e Law, pessoas com mais de 55 anos que tomassem a pílula “milagrosa” diariamente teriam 80% menos chance de um ataque cardíaco ou derrame.
Doenças Esquecidas
A preocupação da indústria farmacêutica por drogas de “estilo de vida” causa um problema grave: para o resto do mundo, algumas doenças são negligenciadas, ou seja, não há interesse comercial em se descobrir novas drogas para o seu combate.
Os pesquisadores Patrice Trouiller, francês, e Piero L. Olliano, italiano, especialistas no estudo do desenvolvimento de novas drogas, estudaram as tendências da indústria farmacêutica. Os resultados são tristes para a maior parte da população mundial.
“Nós descobrimos que, de 1.393 novas entidades químicas comercializadas de 1975 a 1999, apenas 16 eram para doenças tropicais e tuberculose”, dizem eles e seus colegas. Doenças como a de Chagas (tripanossomíase americana) ou do sono africana (tripanossomíase africana) estão no grupo das que são totalmente ignoradas.
Essas doenças negligenciadas correspondem a 12% do impacto de doenças no planeta. Já as doenças cardiovasculares, para as quais 179 novas drogas foram criadas, têm um impacto semelhante, de 11%. É um caso que ilustra bem o estado do mercado de pílulas.
Produção de pílulas contra disfunção erétil, parte das chamadas
“drogas de estilo de vida”
Fonte: Revista Galileu Especial nº3 – Agosto/2003